quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Ventre

Ser recusado por seus pais, pois é fruto de um caso extra-conjugal. Perder tudo para o irmão, inclusive o grande amor. Levar zero em tudo quanto é teste, inclusive nos informais. Esse é tipo de coisa que faz a materialidade da vida cair como um tijolo sobre os devaneios de um homem lúcido.
O protagonista de O Ventre era um aborto. Poderia ser seco por dentro, no entanto, a doçura que nele persiste não permite que morra tão cedo, que viva o destino em branco que lhe parecia prometido.
No início ele chama a todos os homens de tripas, de tripas inchadas regurgitadas por ventres pecaminosos. Ele não é filho de seu pai, e por isso é sutilmente menosprezado. Todos os filhos que perpassam o livro são errôneos, derivados sempre de pactos quebrados.
Conforme se desenrola o livro a amargura do protagonista se torna mais leve, e calmamente nos deparamos com a amargura de todos os outros personagens. Todos são infelizes, uns mais outro menos, e todos, sem exceção, vivem num mundo sem deuses, com o mérito e a crueza da materialidade.
O Ventre é um livro existencialista, que trata a felicidade como ilusão, e traz a responsabilidade de cada um construir o próprio presente. Sem que se apele para a sombra do passado, para o fantasma do futuro, e tampouco para o maniqueísmo do destino.

O Velho e o Mar

Não sei muito bem se deveria escrever sobre esse livro. Faz muito tempo que li, e dificilmente poderia repassar o espanto que senti e que nublou-se diante o tempo. Posso falar da ligeira sensação que ainda me perpassa quando me deparo com ele, e apenas disso.
O Velho e o Mar é um livro de Hemingway que fala sobre um velhinho pescador, da sua amizade com um menino, e da epopéia que vive ao pescar um enorme peixe.
Santiago, o velhinho, tem uma vida difícil, quase miserável, solitária (não lembro bem, acho que em Cuba). Seu único amigo, o menino, também vive uma rotina sem luxos, de simplicidades bem aproveitadas. No entanto, as diferenças entre eles, como a idade, se tornam irrelevantes, pois ambos possuem densos valores, virtudes, e, mais importante, afeto. A história mostra que ambos são extremamente diferentes dos outros personagens, uma vez que possuem a sabedoria da simplicidade e da amizade.
O difícil episódio de Santiago no mar - em que pega um Marlin enorme, que o dará reconhecimento e alimento, mas o perde aos poucos para os outros peixes conforme volta para casa, até restar apenas o espinho - é construído com lenta determinação, entre a poesia do velho e de suas atitudes (a forma como persiste apesar da fome, dos machucados, da sensação de fracasso), e sua virtude.
Como disse Cortázar sobre a diferença entre contos e romances, o Velho e o Mar não é um livro que te ganha por nocaute, mas sim por duração, pelo mérito e determinação de cada round.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Cleo e Daniel

O andrógino era o um. Unidade, tao, completude. O um transformou-se em dois. Cindido ao meio, condenando as duas metades a vagar pelo mundo procurando o que delas se perdeu. No homem que segue sua vida à sombra dos mitos, com os pés firmes na terra, o nome desse vazio é tristeza, solidão, angustia. Uns tapam o buraco namorando sem parar. Outros usam bolinha, ficam viciados em bingo. Outros encontram de fato no outro o uno, para depois perder. Intermitente, o homem persiste.
No livro, de Roberto Freire, todos os personagens se encontram e se separam. Morrem, ficam loucos, e nunca casam. Cléo e Daniel, jovens, belos, puros, encontram-se num beijo. Encontram a paz e depois o desespero de a terem conhecido. Rudolf Flugel, o personagem principal, ilumina sua escuridão atráves do exercício de uma psicanálise extremamente cínica. Gabrielle, a a cafetina francesa, consegue sobreviver pois ainda procura o grande amor perdido. Seus clientes, por outro lado, persistem pois já não procuram nada - são os elefantes, que elegantemente marcham para seu cemitério, pois querem poupar os outros do incômodo da morte.
O único personagem que encontra algum tipo de serenidade (para depois a perder) é Benjamim, que agarrou com os braços fortes os próprios buracos, os dando nome e idade, sem entretanto se perder no inútil duelo entre sujeito e objeto de Rudolf. Benjamim sabia que era vazio, e que sempre seria. Descobriu dentro da terra um veio incessante de água, que se transforma a cada instante, tapa seus buracos, lava, e parte.

sábado, 10 de abril de 2010

seymour

Às vezes eu me pergunto (se você espera uma resposta pode parar por aqui) o porquê ler. E talvez ainda mais inquietante seja o porquê escrever. A cada livro que termino, com ele fechado nas mãos, o dedo polegar ainda dentro como que marcando uma página que não mais precisa ser marcada, deitado na cama (só consigo ler deitado na cama com uma pilha de travesseiros absorvendo meus pensamentos) e tendo gostado muito ou pouco (se o começo não me seduz sinceramente não termino) fico pensando se viveria diferentemente se não o tivesse lido. Tantas pessoas nunca leram um livro em todas suas vidas e talvez – certamente – são muito mais felizes que eu. Mas é claro, quem disse que livros foram feitos para o alcance da felicidade? Salvo os livros de auto-ajuda obviamente, mas perdoem-me seus escritores e seus leitores possíveis de estarem lendo aqui, mas não os considero leitura válida, tampouco literatura. Sim, visto que não acredito que ninguém possa ensinar ninguém a ser feliz, ainda mais se for com um livro que se chama (por exemplo) os cem segredos das pessoas felizes. As pessoas têm que aprender a ser felizes. Errando ou acertando. Difícil? Muito! Sobretudo para as pessoas pensantes. E é aí que entra a história da leitura. Creio com veemência que se lesse (não que eu leia muito) ou que se escrevesse (não que eu escreva muito) menos ou nada, eu seria mais feliz. Seria mais burro é claro (pelo menos academicamente falando – mas também, saber tanta coisa pra quê?), mas absolutamente mais feliz. Afinal, quem não “estuda” não consegue colocar assuntos em crise (seus próprios e mesmo do mundo). Enquanto eu fico tentando achar – e entender – meus problemas e dos outros pra pensar e escrever a fim de ser um grande escritor (modéstia nunca foi meu forte) os outros saem pra uma pelada ou ir ao cinema ver um filme hollywoodiano estratégica e veladamente imperialista enquanto se chafurdam em um balde de pipoca e se afogam em refrigerante ao enfiarem as mãos no meio das pernas da pessoa ao lado.

Por Murillo Teixeira

segunda-feira, 8 de março de 2010

Miss Corações Solitários

Depressão americana.
Os olhos na rua refletem a mesma natureza difícil do concreto.

De um jornalzinho fuleiro a esperança ecoa pela America.
É Miss Corações Solitários,
dando esperança à " cansada da vida", "doce iludida" e "velha solitária".

Miss Corações Solitários é um homem que precisa ser salvo.
Talvez por ele mesmo.
Ele fita a imagem de Cristo pregada em sua parede,
diretamente,
pulando a parte da cruz.

Ele responde as cartas dos desgraçados desses mundo,
sincera e religiosamente.
Ele falta ao trabalho para ter febre e alucinar com o teto de sua cama.

Miss Corações Solitários é um homem que tenta salvar os outros.
Miss Corações Solitários é um homem que quer ser salvo.
Talvez por jesus,
talvez por ele mesmo.

Fragmentos de um Discurso Amoroso

Talvez um estudante de filosofia leia "Fragmentos de um Discurso Amoroso", do Roland Barthes, e comece a discorrer longamente sobre a organicidade e a técnica imoritrível do livro, de modo a fazer qualquer aluninha da ciências sociais dar pra ele imediatamente.

Lendo agora esse livro sinto que não é meu caso.

De modo pouco ortodoxo,
criando um frankstein de discursividades,
Barthes deconstrói aquele que ama,
o enamorado e sua eloquência,
em uma dança referencial de falas
e comportamentos.

Torna o gênio romântico do amor,
que embasa o gênio artístico do romântico,
num esquema reconhecível de psicologias,
causas, efeitos,
e discurso.

Não sei como deve ser estudar filosofia e ler esse livro friamente distanciado pela grade currícular. Para os trouxas, como eu, que acabaram de levar um pé na bunda, o livro é um bálsamo para os músculos, que podem agora acreditar que metade do seu sofrimento é hábito histórico, e a outra metade chantagem.

Os amores durante os séculos,
tão originais em sua dor,
virulentos na morte e na paixão,
descontruídos com o sopro leve
de uma bicha esperta.




sábado, 20 de fevereiro de 2010

Tonio Kröger

A boca enche-se de saliva,
o peito de ar.
O corpo pronuncia a palavra - artista
através do tapete vermelho da língua.

Tonio Kröeger como a maioria de nós teve uma infância miserável.
Ele não era loiro,
tampouco atlético.
O modelo acadêmico de sua época era retrógrado e não o compreendia.
Por isso, justificadamente, ele decidiu deixar o tão desconfortável exterior para seus conterrâneos, passando a habitar os cantos tortuosos, porém seguros, da sua subjetividade.

Tonio
cresceu,
e virou artista.

Ao longo do livro,
com a pretensão de quem recebe os louros do contexto,
ele discorre sobre as vicissitudes da arte,
e do seu gênio.

São tocantes as passagens em que nos é revelada e natureza doce,
atenta e pespicaz,
do personagem.
Por outro lado,
os monólogos extenuantes sobre o artista e a sua arte
arrancam a empatia do leitor a dentadas.

O livro é uma caminhada com tal acompanhante,
cabe a cada um aproveitar mais o diálogo,
ou a paisagem.